quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A demagogia sempre ganha...

"A demagogia sempre ganha", disse Clément Rosset. O filósofo francês opina que se nega a realidade para adorar o que não existe.
Li essa entrevista no La Nacion da Argentina, já faz algum tempo, mas penso que o texto e os argumentos continuam atuais, a tradução fiz de maneira livre.
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Por Luisa Corradini | LA NACION
PARIS – O filósofo francês Clément Rosset é um dos céticos mais brilhantes de sua geração. Em 30 anos de reflexão e 15 livros publicados, este pensador fora de série, insólito e insolente, não há deixado de repetir que “rechaçar a realidade se constitui no pior dos perigos”. E nesses casos, o homem constrói mundos imaginários e crê em fantasmas e fantasias buscando se esquivar da tragédia universal: a existência e a história.
“Rechaçar a realidade da origem a ilusões de todo tipo: futuros luminosos e apocalipses redentores”, afirmou a LA NACION em sua casa de Paris, localizada a poucos metros de “La Closerie des Lilas”, um dos bares preferidos de Ernest Hemingway.
Como fizeram antes outros célebres céticos – Montaigne, Spinoza e Schopenhauer –, Rosset recorda que a realidade não tem “foras”; que ninguém pode ser salvo pelo além; que a realidade é o que é – nem dupla, nem bonita, nem feia – e não é nada. Nascido no nordeste da França em 1939, ex-aluno da prestigiosa Escola Normal Superior de Paris, doutor em filosofia, professor da Universidade de Niza, Rosset antecipou a sua aposentadoria para se dedicar a escrita. Com uma linguagem clara e concisa, com humor e imaginação, cada um de seus livros é uma defesa, uma ilustração da tautologia, esse enunciado que afirma unicamente que "A é A" e que muitos consideram um pensamento sem sentido. Clément Rosset considera, pelo contrário, que essa constatação repetitiva é o núcleo da filosofia. Discípulo admirativo do grego Heráclito (572-448 a.C.), Rosset trata de seguir ao pé da letra a máxima do grande pré-socrático: "Você tem a dizer e pensar o que é, porque o que existe, existe. O que não existe, não existe”.

Clique para ler a íntegra da entrevista
- Pode-se dizer que o Sr. é o filósofo de uma única idéia?
-Seria inclusive um elogio! Mas, atenção: essa "ideia única" não é sinônimo de "pensamento único". É antes uma idéia que contém todas as outras, uma ideia hospital, que descreve um vício inerente à condição humana: para escapar do sentimento da morte, os homens desviam o olhar e preferem escapar do que eles são e adorar o que eles não são.
- É isso que você chama “duplo”?
- O "duplo", como a moral, é uma forma de se negar a realidade ou de se negar o trágico. São dois aspectos de um mesmo problema.
O "duplo" é a ilusão.
Cada vez que a realidade é incômoda ou insuportável, o homem põe em marcha sua imaginação, extraordinariamente fértil, que lhe permite criar um "duplo". Essa sorte de fantasia esconde o que a realidade tem de intolerável, de brutal. A moral foi sempre uma forma de dizer o que deve ser e, sobretudo, de se enganar do que é. Esse "duplo" adquire todas as formas imagináveis: desde o marido enganado que acredita que sua esposa é fiel, passando pelo metafísico que mostra que a verdade está sempre "mais além", até aos militantes do Fórum Social Mundial para quem "outro mundo é possível".
-Em outras palavras, Platão e os altermundialistas vêm a ser o mesmo.
-A mesma loucura. Platão passava o tempo se perguntando como sair de seu tempo para entrar na eternidade. Passou sua vida duvidando de que havia uma vida antes da morte. É evidente que a metafísica platônica, ditada pela aversão ao único mundo de que dispomos, esse mundo em constante movimento, que nos expõem tanto à morte, à incerteza, perda e desejo, coincidem com o altermundialismo que, mistura a exigência e radicalização, tenta mudar "do" mundo ao invés de mudar "o" mundo. No entanto, não é arrancando milho transgênico que se constrói outro mundo. Não é invocando manhãs luminosas que se torna menos difícil o cotidiano. O gênio do pensamento ocidental compartilha com eles a mesma negação da realidade em beneficio de um ideal fatalmente imaginário.
- Por que fatalmente?
- Cioran dizia "dá-me um outro mundo, porque eu estou me afogando". O altermundialista também se asfixiaria nesse outro mundo que não cessa de invocar. Se esse ideal (o outro mundo) chegasse a existir, os idealistas iriam censurá-lo de imediato por ter se desnaturalizado, se transformando em sua própria caricatura. O fracasso do comunismo não se deve tanto a uma interpretação ruim dos textos de Marx como a inevitável corrupção de toda utopia a partir do momento em que pretende materializar-se. Pode-se tratar, mas nunca funcionará. O ideal deve, por definição, permanecer fora de alcance, a risco de não ser mais que realidade. É o que explica porque toda doutrina que persegue a salvação inclui, como condição paradoxal de sua eficácia, a ideia de que essa salvação deve não chegar nunca. Isso é mostrado, em particular, na chegada do Messias da religião judaica.
- Em outras palavras, o ideal não existe nem aqui nem no além.
-Se o ideal não existe nesta vida, não tem porque existir no além. Se as aparências nos enganam, não quero dizer que escondem a verdade. O problema é que nem todos somos capazes de admitir que o mundo seja só o que é.
- O Sr. quer dizer que o desejo desse "outro mundo" não provém do desejo de outra coisa, senão a rejeição da realidade?
- Exato. Querer outro mundo? Mas qual? Esse tipo de ideia fixa é sempre algo vago. Nos militantes, o objetivo perseguido desaparece por trás do desejo de ter um objetivo.
- Moral.
- A realidade é tolerável apenas na medida em que consegue ser esquecida. É inútil lamentar a perda do passado ou esperar o retorno de uma sociedade sem classes. A realidade nunca voltará, porque sempre esteve aqui.
- Mas então, por que se opor e tentar mudar as coisas?
- Tudo depende. Tomemos dois exemplos recentes: o "não" à Constituição européia e o "não" ao contrato de primeiro emprego (CPE) francês. Em ambos os casos, se trata de um combate desigual entre a razão e a demagogia, sem nenhuma proposta séria de mudança. Nesses casos, a demagogia sempre ganha: é fácil obter a adesão da maioria quando um se limita a se opor. No entanto, requer mais e mais coragem, melhorar o mundo que tirá-lo, completo desperdício. Sim ou "não", e nesses dois casos, houvesse sido algo mais que a expressão da rejeição radical e inconsequente da realidade, os que votaram ou se manifestaram pelo "não" se surpreenderiam ao comprovar que sua vitória não melhorou em nada a situação das pessoas que sofrem, nem aumentou a soberania da França na Europa, e nem resolveu o problema da precariedade dos jovens marginalizados. O objetivo não era mudar alguma coisa na sociedade, senão mudar tudo de uma vez ou não mudar nada, que é exatamente o mesmo. A realidade é uma armadilha que é sempre anunciada, nunca pega a ninguém de surpresa, mas confunde a humanidade por sua simplicidade intolerável. Toda realidade é necessariamente trivial.
- Essa visão trágica da existência é capaz de agitar o amor pela existência?
- Assim é. Porque essa visão trágica é lúcida. Desse modo, é capaz de constatar - e é nisto que consiste a alegria - que a vida dos homens resiste, apesar de tudo, às razões infinitas de considerá-la ridícula, miserável ou absurda. Eu diria que viver é em si uma alegria; que a alegria de viver é a soma das alegrias da vida; que querer fugir da realidade é arriscar-se correndo para o pior; que o desejo nunca cumpre as suas promessas; que a ignorância do que podem os homens é a causa de suas misérias; que o desejo é penoso e mais doloroso; que a desilusão gera serenidade; que, essencialmente, a realidade não se modifica em profundidade. Quando se sabe de tudo isto, é possível alcançar uma sabedoria que pode ser formulada da seguinte maneira: alegremo-nos, porque o pior é inevitável.
- Dizer que as religiões são produtos desse "duplo", é dizer, que Deus não existe.
- Como diria David Hume, seria presunçoso dizer que não existe e também o seria dizer que existe, como sabê-lo?
- O que o Sr. acha?
Olha com curiosidade, acaricia a barba, se levanta e caminha lentamente em direção à janela. Durante dois, três, cinco longos minutos refletindo. Depois se vira, volta a sentar e, olhando fixamente para o seu interlocutor, responde desdenhosamente:
- Je m´en fous ! (Eu não me importo!).

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